Sobre Shaming

Atravessando o "pântano da alma"

Ade Monteiro
5 min readJul 8, 2020

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A Palavra Shaming vem do Inglês e deriva de Shame que significa “vergonha” em português. Por conseguinte shaming significa o ato de “envergonhar” alguém, ou seja, desdenhar, humilhar, caçoar, culpar e por aí vai. As atitudes de shaming nos remetem lá pra nossa infância e estão muito conectadas com as ações de bullying que têm basicamente o mesmo objetivo, ou seja, humilhar e caçoar de alguém. No entanto o bullying inclui agressões físicas além das agressões verbais, e por isso pode ser um pouco mais agressivo.

Todos nós temos alguma história de infância quando fomos rechaçades por algum motivo esdrúxulo, seja por nos vestir diferente, nos portar diferente, por levar um lanche mais modesto, por alguma deficiência, por nossa aparência ou formato do corpo, ou seja, basicamente qualquer mínima razão que nos diferenciasse do bando, era motivo pra alguém tirar uma com a nossa cara. Muito presente em nossa cultura gordofóbica está o body shaming que seria o ato de envergonhar ou discriminar alguém pelo formato do seu corpo.

Nós crescemos numa cultura em que envergonhar e assediar os colegas era não só aceito como validado. Os bullies eram geralmente os garotos mais “populares” nas escolas. Como diz Brené Brown, “a vergonha é uma epidemia em nossa cultura”.

Há também a expressão slut shaming que seria numa tradução grosseira “tachar de prostituta” ou seja, envergonhar e humilhar uma mulher que “não seja recatada” como a sociedade espera que ela seja, ou que expresse sua sexualidade da forma que ela deseja, independente dos padrões hipócritas de uma sociedade. O slut shaming é uma potente ferramenta do sistema machista e extremamente eficiente na tarefa de reprimir a sexualidade feminina e todas as suas formas de expressão.

Ou seja, toda vez que a mulher decide expressar sua sexualidade, ou se libertar sexualmente (inclusive fazendo sexo com quem ela deseja) ela é tachada de “puta” de forma agressiva e pejorativa, e dessa forma se sente humilhada e se reprime, seu lado sensual/sexual é visto como sujo e feio, e não deve ser mostrado.

Mas a mulher não precisa nem ser slut pra ter o corpo envergonhado não é mesmo? Os pêlos, por exemplo, que no corpo da mulher são considerados "sujos e feios", no corpo do homem são “naturais”. Ahh os duplos padrões…

Até hoje nossa menstruação é um tabu. Não podemos falar disso, temos que esconder o sangue, o absorvente e as roupas manchadas a todo custo, somos ainda fortemente “envergonhadas” por nosso corpo passar por um processo natural, fisiológico, que acontece porque nosso maravilhoso dispositivo que gera a vida — o útero — está em pleno e saudável funcionamento.

Sexólogues e profissionais da área de sexualidade mencionam que a grande maioria das mulheres tem repulsa de sua área genital e/ou consideram sua vulva feia, e isso seria um reflexo do quê? Obviamente desse processo massivo de uma cultura que faz um shaming pesado e nos envergonha o tempo todo por ter um corpo e uma sexualidade funcional.

Será que é tão difícil compreender que todos nós perdemos muito com isso? Nós mulheres que não temos permissão pra ser nós mesmas e pra sentir prazer e todas as outras pessoas (homens/mulheres/nb) que não desfrutarão do nosso prazer e liberdade e toda a beleza que decorre como consequência dessa autenticidade.

Pois bem… gostaria também de falar do shaming no contexto das nossas relações. Muitas vezes, ao invés de expressar claramente o que você quer, você cobra e “envergonha” su parceire por não ter feito, ou por ter feito errado, ou por ter feito de uma forma tão expressiva, tão sexual… que mexeu com seus próprios tabus e te deixou incomodade.

O shaming pode vir forte nas relações não mono, porque nós começamos a nos conhecer, a nos empoderar e a nos libertar (afetiva e sexualmente). E daí passamos a nos divertir… com outras pessoas além de uma parceria. E aí vem o ciúme… que pode ser reconhecido ou não. E o ciúme utiliza de várias ferramentas para tentar controlar e sair da zona de desconforto.

E então tomade pela insegurança e medo, pode-se utilizar do shaming para, por exemplo, condenar u parceire que está tendo uma conversa mais íntima, mandando nudes, etc. Essa questão pega forte pra nós mulheres, porque nos atinge lá no nosso íntimo, nos nossos medos ancestrais do slut shaming ou seja, de sermos tachadas de putas e por isso, não sermos mulheres “limpas, honestas" ou "dignas de um casamento”.

Brené Brown diz que todos nós sentimos sentimos vergonha da mesma forma, porém a vergonha é organizada por gênero. Os homens, com todo o peso da masculinidade tóxica, sentem a pressão de serem taxados de fracos. Para as mulheres, a vergonha vem como uma camisa de força, que nos aprisiona e nos sobrecarrega no ideal de cumprir uma infinidade de expectativas contraditórias e competitivas.

Então comecei a observar isso no meu relacionamento. Meu parceiro diz:

Você ficou o dia todo preocupada com seu trabalho e não deu atenção à eles.

Eu de repente me sinto a pior mãe do mundo. Sinto o peso enorme da culpa. Ele se fecha condenando meu “egoísmo” e eu vou dormir chateada pensando no quanto sou péssima, no tempo que passa e não me conecto com meus filhos, sofro e me torturo no dilema infinito trabalho x maternidade.

No dia seguinte reflito: haveria outra forma dele me dizer isso? Se ele se sentasse ao meu lado e dissesse:

Você pode dar uma atenção para as crianças? Eles precisam de você, e eu também, você pode nos dedicar seu tempo?

Imagino que seria mais eficiente. Ele não estaria me cobrando e me acusando pelo que eu não fiz, mas sim me pedindo um carinho. Minha reação mais provável seria me render ao seu pedido, e não me culpar ou me defender. Porque isso acontece muito também, me defendo, me justifico e o acuso por não fazer o que ele me cobra. É um shaming sem fim. Uma comunicação violenta. Culpamos, acusamos, cobramos. Precisamos de mais empatia.

Esses são os conflitos e desafios das relações. É importante dialogar. Ao refletir sobre tudo isso eu tive uma conversa séria com meu parceiro sobre o shaming e como temos nos ferido de várias formas através dessa ‘arma’. Analistas Junguianos chamam a vergonha de “o pântano da alma”. Nós adentramos esse pântano quando somos “envergonhades” e nos sentimos humilhades.

Para aquelus com traumas de uma infância abusiva, com questões mais sérias de baixa auto-estima e sentimentos de inferioridade, o shaming pode ser completamente destrutivo, por isso precisamos ter esse cuidado com as pessoas que nos relacionamos, com aquelus que amamos. É preciso ter empatia, ser flexível, é preciso perdoar os erros du outre.

“Se vamos buscar um caminho para nos encontrar, temos que entender e conhecer a empatia, porque empatia é o antídoto para a vergonha” (Brené Brown).

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Ade Monteiro

Psicóloga, Doula e Terapeuta de Casais. Mestre em Estudos sobre a Igualdade. Mãe e feminista.