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Sinto muito, Não me apaixonei

Honestidade e Responsabilidade Afetiva

Ade Monteiro
5 min readOct 30, 2019

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Procurando coisas aleatórias nos meus arquivos, encontrei essa carta, escrita em 30 de outubro de 2003, endereçada à um cara com quem tive um curto romance, porém não pouco significativo.

Meu querido amigo,

Me desculpe demorar tanto a te responder, eu estava protelando, tentando arrumar um momento especial para me inspirar e responder àquela carta tão linda que você me enviou.

Os momentos que passei ao seu lado também foram muito especiais, você é uma pessoa maravilhosa, um homem sensível, carinhoso, meigo, sincero. A experiência de te conhecer pela internet, de te cativar e ser cativada e de me apaixonar sem ter te visto foi muito importante para que eu reconhecesse que existem “detalhes” como um toque, olhos nos olhos, atração, cheiro, etc, que não podem ser ignorados, e que só acontecem quando duas pessoas se encontram fisicamente.

Eu adorei estar com você, e fiz isso porque precisava sentir essas coisas, e também não me privei disso. Mas o amor não aconteceu, nem por culpa minha nem por culpa sua, porque tenho certeza de que demos o máximo de nós, mas talvez por culpa do destino, que deve estar nos reservando outros caminhos a trilhar, ao lado de outras pessoas…

Portanto, não quero me sentir culpada por ter sentido diferente de você ou por não te corresponder, porque isso talvez me faça arrepender de ter ido, ou me deixe ressentida e fechada para me arriscar novamente. Eu não quero me arrepender, e não quero me fechar para novas oportunidades, porque foi ótimo estar aí com você e conhecer novos lugares e pessoas lindas, eu faria tudo novamente.

Também não quero que você se sinta culpado, pensando no que mais poderia fazer para me conquistar, porque as “coisas do coração” fogem da nossa razão, das nossas possibilidades, elas simplesmente acontecem, são instinto, impulso, emoção, elas não têm explicações, teorias ou técnicas, por isso, não quero que você se angustie ou sofra, porque assim também pode se arrepender.

Finalmente, querido, se você combinar comigo que você não vai se culpar e nem se arrepender, eu te prometo fazer o mesmo, e seremos (continuaremos sendo) então amigos, já que nós nos cativamos. Eu peço que perdoe a minha negligência, não sou assim somente com você, gosto de fazer as coisas de forma intensa, e quando quero mandar um e-mail, quero que ele seja especial, de coração, e isso dá trabalho, por isso às vezes vou adiando…

Realmente me afastei, e não quero mais ser assim com você, que se tornou um amigo muito especial.

Com Carinho...

Adelita

Fico feliz em ver que fui honesta e que encontrei uma forma não negligente, nem ofensiva, de dizer que eu não estaria disponível afetivamente. Ou melhor, que eu não estaria disponível para um relacionamento romântico, ou amoroso. Pois uma amizade é claro que pode ser considerada um relacionamento afetivo, não é?

Há 16 anos eu não tinha absolutamente nenhuma ideia de responsabilidade afetiva, nem da importância da comunicação, da honestidade e do cuidado com o outro. É claro que temos uma 'noção' do que não devemos fazer, mas não fomos (e ainda não somos) ensinados a nos relacionar honestamente.

Esther Perel diz:

"A qualidade de seus relacionamentos define a qualidade de sua vida".

À todo momento observamos em nosso volta: pessoas criativas, inspiradoras, talentosas, vivendo "shitty relationships" — relacionamentos medíocres, à base de mentiras, ofensas, opressão e destruição mútua. Me pergunto: qual o sentido? Relacionamentos não deveriam existir para nos "preencher" de amor, de cuidado, de aceitação, para nos olharmos através do olhar do outro e nos vermos uma pessoa melhor?

Por isso acredito na importância de, desde muito cedo, aprendermos sobre inteligência emocional, comunicação não violenta, inteligência relacional, e afins. É necessário e urgente que as crianças e jovens aprendam a se relacionar honestamente.

Sem essa idealização ridícula de que só serei feliz quando encontrar alguém, sem ele não sou inteira, sem ele não sou nada, porque me defino na existência dele… sem um par não existo.

Sem essa romantização tosca de que “o outro me completa”, de que o amor verdadeiro é exclusivo, dependente, submisso, sofrido… é anulação da minha identidade para me "fundir" com a identidade do outro. Só esse é considerado o amor verdadeiro, de total entrega, e nada sobra a mim mesma. O amor no nosso contexto atual é uma "dívida" impagável. O outro sempre esperando mais, "depositando" todas as suas expectativas e idealizações no parceire.

"É preciso uma vila para educar uma criança"- Provérbio Africano

Ninguém completa ninguém. Precisamos de uma vila para suprir nossas necessidades afetivas, assim como precisamos de uma vila para educar uma criança.

Esther também comenta, numa outra palestra, sobre um fenômeno digital nos relacionamentos, que ela chama de "ambiguidade estável", com tantos apps de relacionamentos, e o estreitamento da distância entre as pessoas, temos muito mais opções, e ao mesmo tempo mais incertezas, e daí desenvolvemos um “dúvida incapacitante”: “essa pessoa parece me querer mas não me quer, diz que quer me ver, que seria maravilhoso, mas não está disponível, responde às mensagens de forma vaga, ou me dá um ghosting — ato de ignorar suas mensagens”. Ela então menciona uma das respostas "ambíguas" que as pessoas dão nos dias de hoje:

"Eu gostei muito de lhe conhecer, não tenho certeza se estou pronto para nada além em minha vida no momento. Mas poderia ser muito legal quando eu estiver disponível para estar novamente com você".

Que tipo de resposta é essa? Vamos ser mais claros, vamos simplificar? Responsabilidade afetiva. Cuidado com o outro, com seus sentimentos e com seu tempo que está sendo dedicado à você (em vão).

Você sabe o que deseja? O outro não tem obrigação de adivinhar, o outro que te admira, que se encanta por você, terá uma tendência a romantizar suas atitudes. Não brinque com isso. Tenha clareza do que você quer e do que não quer. Você quer uma relação amorosa, uma amizade ou nenhuma das alternativas?

Se não sabe, descubra. Pratique o auto-conhecimento. Pratique a comunicação. Seja claro no que você sente e no que precisa, e se for o caso, deixe outre ir e abra espaço.

Isso é Responsabilidade Afetiva.

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Ade Monteiro

Psicóloga, Doula e Terapeuta de Casais. Mestre em Estudos sobre a Igualdade. Mãe e feminista.