Photo by kevin laminto on Unsplash

Destrinchando o Ciúme

Escreve um poema, garanto que ajuda

Ade Monteiro
4 min readNov 19, 2019

--

Ela entrou em minha vida num momento inesperado. Eu tinha há pouco “descoberto” minha bissexualidade e não queria me comprometer com ninguém. Queria vivenciar minha sexualidade, queria ficar com outras mulheres.

Mas ela chegou de mansinho e foi ficando. Foi entrando sorrateiramente em minha vida e insistindo em ficar. E por mais que eu lutasse contra, o amor foi se construindo.

Então eu me vi em um dilema: queria viver novas experiências, mas estava comprometida com alguém sem querer estar. Resolvemos tentar um relacionamento aberto sem saber que era um relacionamento aberto, pois não sabíamos que havia essa possibilidade. Poliamor e amor livre? Ainda demoraria uns bons anos para ouvirmos essas palavras. Então nos “arriscamos” nesse tipo não convencional de relacionamento, sem conversar absolutamente nada a respeito. A coisa estava subentendida (se é que me entende)…

Portanto estávamos juntas, mas saíamos sozinhas e ficávamos com outras pessoas sem cobrar nada uma da outra. Ou melhor, eu saía sozinha e ficava com outras pessoas, não sei muito sobre ela. A questão é que eu tinha mais liberdade por trabalhar e ser independente e ia sempre à São Paulo nas baladas “GLS”. Eu ficava com várias pessoas e vivia o que eu achava que tinha que viver. Para uma cultura interiorana e conservadora eu acho que ela foi uma pessoa incrível, me lembro de um dia ela notar um “roxo” no meu pescoço e comentar: “O que é isso? Você é inacreditável!” falou dando risada.

Mas eu me culpava, me sentia o “marido vagabundo” na relação. Suas amigas me julgavam, achavam que eu a usava, mas não era isso, como explicar o que eu sentia, se nem eu mesma compreendia?

Então pra não ser injusta com ela eu terminava… e sofria…. e ela chorava e sofria, e depois a gente voltava…. e assim foi por quase 2 anos. E em um desses términos nós fomos curtir a noite machucadas, eu com uma pessoa que era apaixonada por mim, ela com uma menina linda e sensual.

E aquilo me corroeu por dentro.
Pela primeira vez eu senti ciúmes dela.
Eu a amava realmente.
Ali caiu minha ficha, eu a queria de volta desesperadamente.
Mas por que agora meu desejo se fortaleceu?
E por que só agora tive medo de perdê-la?

O Ciúmes…

Eu tentei compreender esse sentimento. Eu queria desafiar esse sentimento. Eu queria enfrentar esse sentimento. Então decidi escrever sobre ele…

De repente me invade
Um sentimento devastador
Sinto ódio, nojo, falta de ar
Não defino se é angústia ou dor

Meu pensamento oscila
Entre loucura e sanidade
A incerteza corrói meu peito
Não defino se é fantasia ou realidade

A insegurança que não percebo
É a causa da minha desconfiança
Tomada pela comparação e inveja
Não defino se quero perdão ou vingança

Pode ser fruto do amor
Pode ser fruto da paixão
O ciúmes que destrói corações
Melhor se define como possessão

(Esse poema foi escrito em 2005, para minha namorada, com quem eu havia dolorosamente rompido, por achar que não a amava).

Sei que ficou um poeminha bobo… mas eu consegui. Eu descrevi o que eu sentia com detalhes. Eu destrinchei o sentimento. Eu consegui lidar com ele. Eu compreendi que tinha a ver com insegurança, com possessão. Sem ter lido nada à respeito. Sem saber da existência do amor livre.

Quanto sofrimento desnecessário (eu reflito hoje). Pois depois desse relacionamento ainda veio outro, que me machucou profundamente, porque dessa vez ela não estaria OK com “vamos ser liberais”, e me sacaneou pelas costas. Mas essa história fica pra próxima.

Há um tempo fui em uma roda de mulheres para falar sobre relacionamentos e não monogamia. Cada uma falou de suas dores, de seus relacionamentos falidos. Do quanto não conseguiam se “encaixar” no sistema monogâmico. Mas teve uma fala que me marcou mais: ela disse “eu fui ferida e feri muitas pessoas”. Achei essa fala linda e significativa.

Acho que precisamos compreender que erramos. Que temos nossa parte na merda toda. Que nos enveredamos nesse sistema doentio e começamos a jogar o jogo monogâmico. Quantas pessoas temos ferido por causa da nossa insegurança, do nosso ciúme, por achar que u outre é nossa propriedade?

Uma vez assisti uma TED Talk da Eleanor Longden The Voices in my Head. E achei muito interessante a forma como ela conseguiu superar sua esquizofrenia. Ela comenta que começou a “conversar” com as vozes que ouvia. Que percebeu que seria muito melhor acolhê-las do que se aterrorizar, ou lutar contra elas.

Essa é minha sugestão para nós, educades nessa cultura maluca de possessividade, onde tantas mulheres e crianças são assassinadas diariamente por causa desse sentimento devastador que é o ciúme. Converse com ele, e com todos os pensamentos destrutivos que te acometem pelo medo da perda. O medo da perda provém da ilusão da posse. Escreve um poema, garanto que ajuda.

Nada, nem ninguém nos pertence.

Eleanor Longden — The Voices in my Head

--

--

Ade Monteiro

Psicóloga, Doula e Terapeuta de Casais. Mestre em Estudos sobre a Igualdade. Mãe e feminista.