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A história que eu crio

Lidando com traumas e gatilhos nas relações

Ade Monteiro
5 min readMar 10, 2020

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A Brené Brown fala muito em seus livros e palestras, sobre essa "abordagem" que ela criou, que me parece muito interessante. Ela sugere que nos questionemos, em um momento de conflito, briga ou discussão:

Qual a história que estou contando pra mim mesma?

Ela exemplifica contando uma história pessoal, quando decidiu ir com o parceiro e a família passar férias nesse lugar da sua infância, onde tinha um lago maravilhoso que lhe trazia tantas memórias lindas. Eles chegam nesse lugar mágico e ela vai nadar sozinha com o marido. Em um dado momento ela nada até ele e diz “estou tão feliz que decidimos fazer isso juntos” e ele responde algo como "a água está boa" e sai nadando sozinho. Ela fica confusa e tenta novamente se “conectar” com ele e diz algo do tipo “é tão lindo aqui, me sinto tão próxima à você” e ele novamente diz que "a água está boa" e sai nadando sem reciprocar àquele sentimento tão especial que ela queria compartilhar…

Ela fica ansiosa e começa a construir toda uma “história” em sua cabeça:

“Eu devo estar gorda… estou péssima nesse maiô”
“Ele deve estar pensando em se separar de mim, é por isso que não está vendo nada de especial nesse momento a dois”
“Eu já não tenho aquele corpo de antes… ele não deve sentir mais desejo por mim”
“O que se passa na cabeça dele? Estou cansada de demonstrar amor sozinha!”

Resumindo a história, após muita resistência, ela consegue conversar com ele, e ele explica que estava tendo uma “crise de pânico” na água naquele momento, por que tudo que se passava na cabeça dele era um sonho que ele havia tido na noite anterior no qual seus filhos estavam morrendo afogados e ele não conseguia salvá-los!

Nada da história que ela criou em sua mente era verdade.
Ela precisou ouvir a história que ele tinha criado na mente dele para compreender a reação dele.

Precisamos ouvir mais nossas relações, precisamos compreender as histórias que cada pessoa traz consigo. Muitas vezes histórias carregadas de medo, de perdas, de não aceitação, de abuso, violência, negligência.
Precisamos acessar nossas próprias histórias, e compreender como elas interferem em nossas relações.
Mas precisamos também aprender a diferenciar nossas histórias reais das histórias que criamos para lidar com o medo do abandono ou da rejeição.

Me lembro de uma passagem no livro de Milan Kundera “A Insustentável leveza do ser” na qual Franz faz amor com Sabina e o autor descreve que ele fecha os olhos para "mergulhar no infinito daquela escuridão" que me parece ser uma forma dele se concentrar na emoção intensa do sexo, enquanto que Sabina fecha os olhos porque se recusa a ver.

Então, vemos dois personagens, com uma mesma atitude (fechar os olhos), e histórias completamente diferentes: um fecha os olhos para sentir e focar na emoção enquanto o outro fecha os olhos por repulsa.

Não é possível saber o que a outra pessoa sente se não nos comunicarmos com ela.

E minha impressão é que, infelizmente, nossas deduções são auto-destrutivas. Sempre tendemos a olhar a atitude ou reação da outra pessoa pelo lado negativo e/ou nos culparmos por aquela atitude que nos parece negativa.

Então criamos essas estórias:

Se ele não me retorna o carinho eu devo estar feia, ou se ele demonstra indiferença ele deve estar me traindo, ou se ele não coopera com a casa/os filhos ele é egoísta, ou se ela é ciumenta é porque quer me controlar, ou se ela fecha os olhos quando faz amor é porque está fingindo, etc etc.

Mas a história real pode ser:

Ele não retorna o carinho ou se mostra indiferente por que está enfrentando seus próprios fantasmas internos da depressão ou da crise do pânico. Ele não coopera porque pode nunca ter feito essas tarefas ou aprendido que elas são de igual responsabilidade do homem, ou pode ser que ele sinta o peso da masculinidade tóxica afirmando pra si mesmo que fazer "tarefas femininas" o torna "frágil e afeminado"... E se ela é ciumenta ela pode ter uma questão séria de baixa auto-estima ou baixa auto-confiança, decorrente de um modelo de relação tóxica com seu próprio pai/mãe que era uma pessoa ciumenta e controladora, ou ela pode ter um profundo medo do abandono/rejeição por ter sido abandonada/rejeitada por alguém, e se ela fecha os olhos ela pode estar simplesmente se concentrando em sentir o prazer daquele momento...

Enfim, essas são apenas hipóteses para exemplificar as milhares de explicações e histórias que embasam nossos comportamentos.

Mas uma questão importante que pode estar implícita nessas "histórias" que criamos se relaciona com os nossos gatilhos. Um gatilho emocional é uma emoção acionada. Essa emoção acionada pode estar relacionada com um trauma. E quando uma reação ou atitude da sua relação "toca" em algum desses gatilhos nossa reação será com certeza intensificada pelos sentimentos que os gatilhos nos despertam. É muito importante que possamos reconhecer por que reagimos de forma "exagerada" em determinadas circunstâncias. Minha hipótese é de que, quando alguém ou algo ativa esses "gatilhos" nossa atitude se torna extremamente defensiva, ofensiva ou "protetiva".

Nós podemos começar a justificar nosso comportamento, ou a apontar tudo que fizemos de bom e correto e digno ao outro, ou a culpar, insultar e ofender a outra pessoa, ou pode ser que escolhamos ficar em silêncio, e nos fechamos em nossa concha, ou começamos a afundar no poço que cavamos e repetimos pra nós mesmos o quanto somos "feios, inúteis, estúpidos, idiotas, incompetentes, ingênuos, ridículos", etc, etc…..

Não há limite pra nossa capacidade de auto-destruição.

Mas eu me pergunto se há a possibilidade de passarmos a olhar nossas reações ou as reações das outras pessoas com compaixão e empatia. Vejo que essa é a proposta da Brené Brown com a “a história que estou criando”. O que está por trás do meu ódio, do meu ciúme, do meu medo, do meu vício, do meu ressentimento, da minha insatisfação, do meu auto-boicote? Eu acredito — em minha visão de psicóloga e psicoterapeuta, é claro — que esses sentimentos despertados têm uma história.

E precisamos escavar essa história, por que ela está muito bem enterrada coberta por várias camadas de proteção contra a dor. E essa história, por mais triste e dolorosa que seja, ela é nossa, ela é quem nos fez o que somos, nos trouxe aonde estamos, temos que nos orgulhar dela.

E por fim, teremos que contar essa história em algum momento às pessoas importantes que compartilham afetos conosco. Isso é vulnerabilidade¹. Isso faz parte de ser eu mesma e de perder o medo². Esses são dois princípios interdependentes e imprescindíveis para a saúde das nossas relações.

¹ vulnerabilidade na verdade é o tema principal de todo o estudo da Brené Brown.
² essas questões foram abordadas no último texto que traduzi “Se existe Medo é verdadeiro?”

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Ade Monteiro

Psicóloga, Doula e Terapeuta de Casais. Mestre em Estudos sobre a Igualdade. Mãe e feminista.